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O apóstolo Paulo é indiscutivelmente o missionário mais conhecido da história. Afinal, ele escreveu cerca de metade do Novo Testamento. Suas palavras à igreja de Filipos no capítulo 4 sobre sua situação financeira revelam que seu apoio variou muito desde não ter nada a ter abundância. Em Corinto (Atos 18), ele passou um tempo fazendo tendas para se sustentar. O nosso apoio também variou muito. Apesar de nunca termos feito tendas, ao longo dos anos envolvemo-nos em diversas profissões que Paulo nem sequer conhecia.
No episódio anterior, falei sobre a importância do papel da família em uma empreitada missionária no estrangeiro. Claro, o mesmo vale para os obreiros da igreja no seu país natal. Meu ponto foi que os missionários são mais propensos a deixar o campo por questões familiares do que por falta de recursos materiais. Afinal, se Deus nos chamou para uma obra, Ele vai assegurar que temos tudo o que precisamos para fazer Sua vontade. "Fiel é o que vos chama, o qual o também o fará." 1 Tess. 5.24. Esclarecimento: diga-se de passagem, este versículo não está falando sobre nossas necessidades materiais. O contexto é a chamada de Deus para que sejamos irrepreensíveis diante de Jesus Cristo quando Ele vier, e Deus mesmo trabalhará para que isso aconteça. Mesmo assim, não acho que estou a esticar muito o ponto quando aplico esta promessa às coisas materiais de que precisamos para cumprir qualquer plano que Deus estabeleceu para nós.
Dito isto, os desentendimentos sobre dinheiro são apontados como uma das principais causas do divórcio. Atrevo-me a acrescentar que essas questões provavelmente mais surgem nos dois extremos: ter demasiado dinheiro ou não ter o suficiente. Já fiz menção de alguns aspetos da nossa situação financeira, mas quero focar-me aqui nos desafios materiais que tivemos de superar na subida desta montanha que Deus nos colocou a nossa frente.
Para além do facto de eu ter deixado o meu emprego e de estarmos totalmente dependentes de ofertas voluntárias de igrejas e indivíduos, a primeira batalha que enfrentei foi conseguir uma isenção das contribuições para a Segurança Social. Se eu estivesse dando essa palestra pessoalmente, pediria às pessoas na sala que levantassem a mão se soubessem do que estou falando e, assim como eu esperava, ninguém levantaria a mão. Por isso, peço a você que está ouvindo ou lendo essas palavras que levante a mão se souber do que estou falando. Bem, como não consigo ver nenhuma mão no ar, então vou tentar explicar brevemente o que estava por detrás desta situação.
Nos anos 60, os ministros foram abrangidos pela obrigação de fazer contribuições para a Segurança Social sobre os rendimentos que recebem das igrejas. Havia um número suficiente de pastores e trabalhadores religiosos que se opunham, por razões de consciência e o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, que o IRS lhes permitia optar por não pagar contribuições à Segurança Social sobre os rendimentos auferidos como ministro. Os rendimentos provenientes de qualquer outra fonte continuariam sujeitos a contribuições da SS. Essa opção ainda está disponível hoje, mas o problema é que o ministro tem de optar por essa exclusão na primeira vez que declarar renda como trabalhador religioso. Meu sogro e outros pastores e missionários que conhecemos estavam fazendo exatamente isso quando as regras entraram em vigor em algum momento da década de 1960. Quando começamos nosso trabalho missionário e nos tornamos dependentes das ofertas da igreja em vez dos salários do emprego, senti que seríamos melhor servidos não tendo que reservar pagamentos para a SS. Cada centavo economizado seria um dólar ganho, como dizemos em inglês, e precisaríamos de cada centavo que recebessemos. Fui ao escritório da SS em Little Rock, a capital de Arkansas, em janeiro para solicitar a isenção. Na sua resposta, a SSA negou o meu pedido, e eu fiz inúmeros apelos em 1971, antes de aceitar a derrota inevitável no final do ano. A razão para a recusa foi que, em 1967, pouco depois de casarmos, pastoreei uma pequena igreja rural por cerca de um ano, enquanto ainda era estudante na Universidade. E embora eu não tivesse recebido nenhum rendimento como ministro nos três anos seguintes, porque eu não tinha optado por isenção da SS naquela primeira vez, minha situação estava definitivamente fixa.
Tive de admitir a derrota nesta primeira batalha, e foi dececionante. Mas resignei-me ao facto de o meu melhor plano ter sido frustrado por complicadas regras burocráticas. A importância dessa derrota só se concretizou 42 anos depois, quando apresentei meu pedido de aposentadoria as serviços da SS dos EUA que inclui benefícios do Medicare, o sistema de saúde, e que são um fator importante para cobrir nossas despesas agora.
Há duas lições (pelo menos) a retirar desta situação. A primeira é escatológica, ou seja, o que nos diz sobre o fim do mundo e os últimos dias. Bem, além de suas convicções sobre a separação entre Igreja e Estado, havia a crença de alguns, como um irmão da minha idade que estava começando seu ministério pastoral na mesma época que eu, de que o mundo iria acabar antes que nossa geração atingisse a idade da aposentadoria. Entre nossas igrejas, a ênfase nas mensagens proféticas criou a convicção de que as palavras de Jesus, "Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam", se referem à nossa geração, que nasceu exatamente no momento em que Israel se tornou uma nação independente, em 1948. Ou seja, a figueira tinha posto as suas folhas. Mateus 24.32-34.
É claro que cada dia nos aproxima da vinda do Senhor e do cumprimento das profecias do fim dos tempos, mas não sabemos exatamente quando isso acontecerá. Martinho Lutero é citado como tendo dito algo como "Se eu acreditasse que o mundo acabaria amanhã, ainda plantaria uma macieira hoje". Se ele realmente disse isso, ou não, é discutível, mas essa maçã não cai longe da árvore das palavras de Jesus em Mateus 24.45-46 quando Ele diz: "Quem é pois o escravo fiel e prudente...? Bem-aventurado aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim." A forma como as coisas estão a avançar tão depressa no palco mundial, quem sabe? O Senhor ainda pode vir enquanto eu estou recebendo a pensão da Segurança Social. A lição aqui é continuar arando, semeando e regando até sermos chamados do campo, de uma forma ou de outra.
A segunda lição é sempre lembrar que Deus vê o que espreita ao sairmos das curvas e o que nos aguarda no outro lado das colinas da estrada que nossas vidas seguirão. Ele já sabe as encruzilhadas a que chegaremos mesmo anos no futuro. Olhando para trás, penso que uma das principais razões pelas quais pastoreei aquela igreja por um ano em 1967, pode ter sido para desencadear as regulamentações burocráticas que frustraram meu plano, que acabou não sendo tão brilhante, afinal.
O SIGNO DO CROCODILO
Foi na nossa conversa inicial com o funcionário da SS em Little Rock que os crocodilos foram introduzidos no nosso futuro financeiro. Expliquei à senhora do escritório da SS que iríamos para o Brasil, e lhe disse o porquê e qual a maneira da nossa ida. Ela viu-nos tal e qual éramos, dois jovens visionários sem apoio financeiro garantido. Suas palavras de preocupação foram: "Por que o senhor está levando estas duas crianças pequenas para a selva amazônica para serem comida de crocodilos?" Ela provavelmente não falhava muito na sua opinião sobre os jovens visionários tolos, mas ela errou o alvo quanto à parte da Amazônia e os crocodilos. Estávamos indo para o outro extremo do Brasil, a milhares de quilômetros da Amazônia. E os maiores perigos a que expusemos nossos filhos não eram crocodilos. Era conduzir no trânsito louco de São Paulo, e os cafezinhos que as jovens da igreja deram a Jeff para beber na cozinha enquanto visitávamos com seus pais na sala de estar. Ele ainda não tinha nem dois anos de idade.
SACRIFÍCIOS MATERIAIS?
Nunca fomos instruídos a "vender tudo e dar aos pobres", como Jesus disse ao jovem rico para fazer, mas ao mudarmos de continente para continente três vezes, chegamos muito perto de dar tudo. Falo mais sobre isso no capítulo sobre 1972, quando finalmente demos o primeiro pulo intercontinental. Em outubro de 1971, fomos informados pelo irmão Garner (ver Elenco, Ep. 7) que a igreja decidiu vender o piano de Abbie e usar esse dinheiro para o fundo da viagem. O Piano. Como mencionei no episódio 7, o piano é um elemento recorrente em nossa história. As irmãs mais velhas de Abbie tinham aulas de piano, mas quando chegou a vez ela não havia mais dinheiro para as aulas. Os pais comprou-lhe um curso por correspondência e, a partir dos 9 anos, ela aprendeu a tocar piano como auto-didacta. Depois que nos casarmos, um piano era tão essencial em nossa casa quanto um fogão e frigorífico. Mas levar o piano para o Brasil estava fora de questão, e não havia lugar para armazená-lo. Além disso, não tínhamos intenção de sair do Brasil. Afinal, acabámos saindo do Brasil, mas por razões com as quais nunca sonhámos. Ficar sem seu piano foi talvez a maior sacrifício Abbie poderia fazer. Estava disposta antes deixar a mãe e o pai. Jesus disse que deveríamos estar dispostos a fazer isso, e embora Ele não tenha mencionado um piano, acho que é seguro dizer que Ele quis dizer isso também.
Nunca sabíamos qual seria o nosso rendimento de um mês para o outro ou mesmo de um dia para o outro. Sabíamos que Deus proveria nossas necessidades, não importa seu tamanho, e se tivéssemos dinheiro, daríamos um passo de fé e comprar o que era necessário. (Os únicos cartões de crédito que tínhamos eram para comprar combustível para o carro.) Numa quarta-feira do início de dezembro, na Califórnia, encontramos um casaco, um para de calças e duas gravatas em promoção, e pagámos US$ 57,89 por elas. Não sei o que esperávamos comprar com os US $ 0,14 que me restav am no bolso. Mas naquela noite, em uma reunião da igreja, o Grupo das Senhoras nos deu US $26 e a igreja nos deu uma oferta de US $25. Eu tinha um casaco novo e tínhamos o suficiente para enfrentar o dia seguinte. [Divulgação completa: O que eu gastei foi todo o que tínhamos em dinheiro. Naquela manhã, eu tinha descontado US $ 318 em cheques e comprei US $260 em cheques de viagem. É por isso que tinha $58 em dinheiro na algibeira e fiquei com $0.11 em troco quando comprei a roupa. Fazendo bem os cálculos, eu devia ter tido $0.03 na algibeira antes de descontar os cheques naquela manhã. Mas aqui surge outra pergunta: será que cheques de viagem ainda existem hoje?]
Eu mencionei anteriormente como Deus usou Seu povo para nos fornecer o pão de cada dia em Tacoma, mas em Portugal Ele usou vizinhos que nunca se atreveriam a vir ouvir o evangelho de "protestantes" para bater à nossa porta e literalmente nos dar o pão de que precisaríamos por 4 dias.
FAZER TENDAS COM PEPINOS
Fomos abençoados repetidamente pelos dons e ofertas dos outros, mas nunca pedimos nenhuma oferta nem lançamos qualquer apelo de apoio. Informamos as pessoas sobre quais eram as nossas necessidades específicas, se perguntassem e parecessem verdadeiramente interessadas, mas essa não era a nossa prática habitual. O termo "bivocacional" tornou-se numa expressão comum para descrever os missionários envolvidos na “confeção de tendas” como Paulo, uma forma de autosustentação que implica trabalhar em dois lados. Mas bem antes deste termo aparecer éramos "multi-vocacionais". Metemos a mão em qualquer coisa que aparecesse para fazer face às despesas. Anos mais tarde, na Madeira, fizemos macramé, Abbie decorou bolos de casamento. Vendemos Bíblias e cartões de felicitações. Ensinei inglês e fiz traduções; eventualmente trabalhei para o Departamento de Estado dos EUA como agente consular.
Tudo isso foi prefigurado em 1971. Em setembro, nossas ofertas totalizaram US $ 90, após os três meses anteriores em que as ofertas estavam abaixo de US $ 200 / mês, isto enquanto eu estava a tirar o curso de linguística. Já falei dos crocodilos sobre os quais fomos avisados em janeiro, e agora em setembro tivemos de enfrentar pepinos.
Passámos setembro com a irmã de Abbie e sua família em Bellingham, Washington. Eu não tinha reuniões marcadas com igrejas, então trabalhamos. O cunhado de Abbie, Carlton, entregava jornais em numa zona rural todas as manhãs, das 2h às 5h, e durante três semanas eu ganhava US$ 6 por noite entregando os jornais para ele. Eu voltava para a casa, tirava um cochilo rápido, se possível, e por duas semanas, Abbie e eu saímos e das 9h ao meio-dia, ou enquanto pudéssemos aguentar, apanhamos pepinos pela soma extravagante de US $ 0,35 por balde de 20 litros. Estava frio e úmido no início da manhã; a ramagem dos pepinos irritava os nossos braços, mesmo quando usávamos luvas. Foi um trabalho árduo, mas gratificante: quando nos aposentamos de nossa carreira de 2 semanas como colhedores profissionais de pepinos, saímos mancando, mas com US$ 23,45 em nossos bolsos. Uma manhã, para variar, colhemos milho doce por US $ 2,00 a saca e saímos com US $ 3,80. No final de setembro, quando chegou a hora de ir a Quesnel, na província de Colômbia Britânica, para nosso próximo compromisso nas igrejas, tínhamos US$ 86 na carteira. Deve ter sido suficiente porque atravessámos a fronteira, embora eu tenha escrito no diário, "... tive de falar com o guarda de fronteira durante algum tempo." Por que, será?
Estávamos muito perto da fronteira com Canadá, uns 30 km, eu acho. Passamos cerca de uma semana em Quesnel, que fica cerca de 600 kms ao norte da fronteira. Foi a nossa primeira introdução ao "outro" inglês falado por muitas pessoas no mundo. Escrevi no meu diário que os canadianos dizem "holidays" quando nós, americanos, dizemos "vacation" e "suspenders" para nós são "braces" para eles. Mas tendo vivido 40 anos na Madeira dentro da esfera de influência do Reino Unido, tais expressões são normais aos nossos ouvidos hoje.
Quando voltamos para Washington, acabamos em Cashmere, e eu adicionei a colheita de maçãs ao meu repertório de habilidades agrícolas. No final do 4º dia de colheita, eu tinha registado 15 caixas de maçãs a US $5 cada, ou seja US $75! Não só gostei mais do dinheiro deste trabalho, como descobri que ficar em pé numa escada e apa nhar uma maçã era muito mais agradável do que curvar-me para pegar um pepino do chão molhado. Maçãs que caíram e ficaram machucadas não passavem, e podíamos comer uma delas de vez em quando. Isso também foi mais apetitoso do que dar uma mordida em um pepino maduro demais.
Comparar os preços de 1971 com os de hoje é mais divertido do que instrutivo. Mas ter apenas US$ 0,14 no bolso hoje não seria muito diferente do que ter apenas US$ 0,14 naquela época, só que hoje tenho cartão de crédito. Naqueles tempos compramos gasolina em El Paso por US $ 0,20 / galão e em Arizona por US $ 0,32. (Hoje custa perto de $4 / galão) E quanto você diria que nos custou ir à Disneylândia com as duas crianças em dezembro de 1971? Ricardo ainda tinha 2 anos, por isso não pagou nada. Uma família da igreja que visitamos em Los Angeles nos emprestou seu cartão Disney para ajudar com as despesas. Eu não sei quanto o cartão nos poupou, mas nós entramos na Disneylândia por US $14.
De Cashmere, nossa próxima parada foi Bend, Oregon, o estado para o sul, no nosso caminho para a Califórnia. Foi em Bend na última semana de outubro que recebi um telefonema que revelou o elefante na sala que ia para onde quer que fossemos. Um elefante que nos perseguiu durante 30 anos.
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