1 Coríntios 3.9-15 Ilustrado
Maio de 2020 - O calçadão foi uma ótima ideia. Podíamos caminhar através do bosque sem nos preocupar com videiras que nos fazem tropeçar, ou espinhos e abrolhos que agarram a roupa e arranham a pele. Ou, mais importante ainda, ao passar pelo bosque, ficamos dispensados de preocupar-nos com a possibilidade de pisar numa cobra escondida na grama e folhas mortas. O calçadão tinha bom aspeto, e transmitiu um sentido de ordem e direção onde de outra forma não havia nem uma, nem outra
Fevereiro de 2024 - O tempo passou, seus efeitos mais do que evidentes. O que era belo tornou-se perigoso. Partes do calçadão começaram a se desprender; muitas das tábuas estavam podres; os suportes subjacentes viraram-se serradura. Nunca tivemos certeza se a próxima tábua em que pisamos iria desmoronar. A beleza original se foi, tal como a beleza das flores e da juventude que passam diante de nossos olhos.
Só havia uma coisa que eu podia fazer: comecei a desmontar o calcadão para levar o material para ser queimado.
Enquanto desmontava o calçadão, retirando os parafusos para que não acabassem sendo uma ameaça para pneus de tratores e máquinas que atravessam a área da queimada, pensei no que Paulo escreveu à igreja de Corinto, que estava repleta de divisões entre os partidários de Apolo, de Pedro ou de Paulo, sem mencionar a ala "espiritual" da igreja que hasteava a bandeira de Cristo. Paulo ressaltou que cada ministro tinha sido usado por Deus para fazer sua parte no trabalho de levanter a igreja lá. Usando a agricultura como figura de linguagem, ele disse que um homem plantou e outro regou, mas foi Deus que fez com que a obra crescesse e florescesse. Em seguida, ele aplicou a linguagem da construção ao se referir à implantação da igreja em Corinto.
Porque nós somos cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus. 10 Segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei eu como sábio construtor, o fundamento, e outro edifica sobre ele; mas veja cada um como edifica sobre ele. 11Porque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo. 12E, se alguém sobre este fundamento levanta um edifício de ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha, 13a obra de cada um se manifestará; pois aquele dia a demonstrará, porque será revelada no fogo, e o fogo provará qual seja a obra de cada um. 14Se permanecer a obra que alguém sobre ele edificou, esse receberá galardão.. 15Se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele prejuízo; mas o tal será salvo todavia como que pelo fogo. 1 Cor. 3.9-15
Uma palavra sobre Apóstolos
Paulo disse que seu papel era lançar o fundamento; outros que vinham atrás dele eram responsáveis por construir sobre o fundamento. Aproveito aqui para divagar momentaneamente para dizer algo sobre o ofício dos "apóstolos". Há muita discussão sobre se há, ou deveria haver, apóstolos na igreja hoje. Uns dizem que o ofício dos apóstolos foi limitado aos apóstolos originais e terminou com Paulo. No outro extremo do espectro teológico, encontramos denominações com liderança constituída por uma hierarquia com "apóstolos" no topo.
A minha posição provavelmente situa-se algures entre estes dois extremos. Creio que os apóstolos originais que andaram com Jesus receberam uma comissão especial para lançar os alicerces da igreja, e eles foram especialmente dotados para fazer isso, inclusive sendo divinamente inspirados a deixar em formato escrito o fundamento do ensinamento de Cristo que podemos ler no NT hoje. Paulo, próprio, achou necessário defender sua autoridade apostólica diante dos críticos que chamaram à atenção o facto que ele entrou em cena depois que Jesus já havia subido ao céu. Ele nunca tinha andado com Jesus. Ele era um "Johnny-come-lately" que "chegou ao baile muito tarde". Como ele escreveu em 1 Coríntios 15.4-9a,
“…[Jesus] que foi sepultado; que foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras; 5 que apareceu a Cefas, e depois aos doze; 6 depois apareceu a mais de quinhentos irmãos duma vez, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormiram; 7 depois apareceu a Tiago, então a todos os apóstolos;8 e por derradeiro de todos apareceu também a mim, como um que nasceu fora do tempo. 9 Pois eu sou o menor dos apóstolos…”
Nesse sentido, se há apóstolos hoje, eles não estão na mesma categoria que aqueles homens. Eles lançaram o fundamento da fé "que de uma vez para sempre foi entregue aos santos" (Judas 3) nas escrituras divinamente inspiradas, e abriram as portas ao evangelho em todo o mundo conhecido. A palavra "Apóstolo" não é uma tradução para o português. É a forma portuguesa da palavra grega "Apóstolos", que significa "aquele que é enviado". Em certo sentido, todo cristão é um apóstolo, enviado pelo Senhor ao mundo, mas no NT, há um grupo separado de servos chamados "apóstolos": "E ele deu uns como apóstolos, e outros como profetas, e outros como evangelistas, e outros como pastores e mestres.” Efes. 4.11
Assim, uma interpretação possível é que o termo "apóstolos" seria aplicado hoje àqueles que chamamos de "missionários", pois estes são "enviados com uma missão específica". Pelo que Paulo disse, no entanto, eu sugeriria que nem todos os que são enviados hoje como "missionários" se enquadram na classificação de "apóstolos". Paulo distinguiu entre o "lançamento de alicerces" e a subsequente edificação da igreja através de profetas, evangelistas, pastores e mestres. Hoje em dia há muito trabalho missionário a ser desenvolvido por evangelistas, pastores e mestres, que são servos de Deus especialmente dotados. Mas são eles "apóstolos"? Ora, falando pessoalmente, Deus nos deu uma chamada muito específica para realizar um trabalho missionário pioneiro, e eu pedi ao Senhor que nos enviasse para onde ninguém mais tinha ido ou estava indo. Creio que, tal como Paulo, Deus me enviou para "20... anunciar o evangelho, não onde Cristo houvera sido nomeado, para não edificar sobre fundamento alheio". Romanos 15.20
Deus enviou-nos para estabelecer a Sua igreja na Ilha da Madeira e lançar o fundamento sobre o qual outros agora estão a construir. Muito está sendo feito hoje em missões que prestam ajuda médica, educação, treinamento de liderança, tradução da Bíblia e trabalho de literatura, ou assistência social, mas a plantação de igrejas é uma chamada totalmente distinta de tudo isso. Isso quer dizer que eu era um apóstolo? Nesse contexto, talvez sim, mas certamente nunca procurei tal título. Sempre recusei os títulos de Dr. ou Rev., e oponho-me veementemente a ser tratado como "Apóstolo". Mas se ser apóstolo significa lançar o fundamento de uma igreja, foi esta a chamada que abracei de todo o coração.
Uma história do campo missionário
Termino com uma história dos primeiros anos do nosso trabalho missionário na Madeira, onde fomos os primeiros Batistas a trabalhar na ilha nos 500 anos da sua história. Passaram-se 4 anos até termos as primeiras profissões de fé e batismos. Nos 4 anos seguintes reunimos um grupo de cerca de 20 membros ou visitantes assíduos, entre eles o irmão Manuel. Ele e sua família se juntaram a nós vindos de outra denominação, onde ele teve contato próximo com um irmão que não estava evangelizando com nenhuma denominação em particular e cujo ministério principal parecia ser distribuir folhetos a turistas que saíam dos navios de cruzeiro no porto, ou visitar casas ao redor da ilha, num ministério de oração pelos doentes e o exorcismo de demónios.
Um dia, o irmão Manuel veio ter comigo, perturbado com o que aquele irmão lhe tinha dito. "Pastor Edgar", como eu era conhecido na ilha, “não está cheio do Espírito Santo porque há tão pouco fruto depois de 8 anos de trabalho,” dizia ele. Este é o mesmo irmão que me repreendeu na cara pela minha falta de fé, porque eu estava ensinando inglês para ajudar a sustentar minha família, e tínhamos aberto uma livraria cristã. Segundo ele, se eu realmente confiasse em Deus, passaria o meu tempo visitando pessoas em toda a Ilha e vivendo dos seus donativos. [Para constar, ele, tal como o apóstolo Paulo, não tinha esposa nem filhos.]
"Se o pastor Edgar está realmente cheio do Espírito Santo, onde está o fruto?", uma aparente referência às palavras de Jesus em João 15.5 de que aqueles que permanecem n'Ele e Ele neles darão muitos frutos. O irmão Manuel, claro, queria ver a obra crescer e ficou genuinamente perturbado com as palavras deste irmão.
Sabendo que o irmão Manuel tinha acabado de construir um quarto para que o seu filho de 20 e poucos anos pudesse ficar com ele, aproveitei a oportunidade para enquadrar a minha resposta nas críticas que me foram dirigidas.
"Eu vejo que o irmão acabou de construir um quarto para seu filho dormir, não é?", comentei, referindo-me a uma estrutura de 3 m x 3 m que Manuel montou no quintal atrás de sua casa.
"Dois fins de semana", respondeu Manuel. Eu já tinha visto o quarto que ele fez de folhas de compensado e chapas galvanizadas, e nem sei se tinha janelas.
"Quanto tempo o irmão acha que vai durar? Fez isso para ser uma solução permanente?”
"Não", disse ele. Construir uma casa para durar leva tempo; requer planeamento, licenças municipais, fundações e materiais sólidos para paredes e o telhado.
"Pois, é isso mesmo", disse eu. "É verdade que tem demorado um pouco para chegar a este ponto no trabalho aqui, mas não estou aqui para montar um barraco de contraplacado para o Senhor.”
Tenho visto muitas cartas de relatórios de missionários em que o ponto principal é listar o número de contatos feitos, convertidos batizados e dar estatísticas da assistência de membros e visitantes. É claro que é de toda a justiça se alegrar ao ver crescimento e progresso nessas áreas, mas há uma tentação de exagerar os números e esticar as estatísticas, ou pior, usar táticas menos espirituais para "encher os bancos da igreja". Nos primeiros anos do trabalho, ainda antes de termos convertidos e membros locais, a presença regular nos cultos nunca era superior a 20 pessoas. Alguém sugeriu que uma maneira garantida de encher a sala de reuniões era "colocar uma nota de 20 escudos (cerca de 1 dólar) nos hinários”.
Na análise final...
Nesta altura da minha vida, é natural olhar para trás e refletir. Como vou comparecer diante do tribunal de Cristo? Será que vou-me apresentar ao Senhor com uma impressionante pilha de madeira, feno e folhas mortas, como estes restos do calçadão, ramos de uma árvore que tombou e derrubou os cabos da nossa luz elétrica na semana passada, e folhas mortas do outono passado que juntámos?
1 Coríntios 3.13 nos adverte que "13 a obra de cada um se manifestará; pois aquele dia a demonstrará, porque será revelada no fogo, e o fogo provará qual seja a obra de cada um. "
De tudo o que tenho feito, que estou a fazer, e o que espero fazer ainda na minha vida, qual será o tamanho da pilha de cinzas no último dia? As provações de fé agora vêm para refinar a nossa fé, para que não apareçamos no último dia diante do trono puxando uma carroça cheia de madeira e feno atrás de nós, que depois fica reduzido numa pilha de cinzas..
Comments